Um novo guia abrangente sobre a arquitetura da África Subsaariana

Este artigo foi publicado originalmente no Common Edge.

Comparados ao Ocidente e Oriente, a consciência e o conhecimento da arquitetura da África subsaariana - África ao sul do deserto do Saara - são escassos. Um novo livro pretende mitigar esse descuido, e é uma conquista significativa. Architectural Guide Sub-Saharan Africa (editora DOM, 2021), organizado por Philipp Meuser, Adil Dalbai e Livingstone Mukasa, levou mais de seis anos para ser elaborado. O guia de sete volumes apresenta a arquitetura nos 49 estados-nação subsaarianos do continente, inclui contribuições de cerca de 340 autores, 5.000 fotos, mais de 850 edifícios e 49 artigos expressamente dedicados a teorizar a arquitetura africana em seus aspectos sociais, econômicos, históricos e contexto cultural. Entrevistei dois dos editores — Adil Dalbai, pesquisador e arquiteto praticante especializado na África subsaariana, e Livingstone Mukasa, um arquiteto nativo de Uganda interessado nas interseções entre a história da arquitetura e a antropologia cultural — sobre os desafios de criar o guia, algumas de suas revelações sobre a arquitetura da África e seu impacto potencial.

MJC:Michael J. Crosbie
AD: Adil Dalbai
LM: Livingstone Mukasa

MJC: O que os motivou a organizar esta publicação? Qual foi sua gênese?

AD: A sua origem foi em 2014, quando trabalhávamos em alguns projetos de arquitetura na África Ocidental, e rapidamente percebemos que havia uma falta de literatura que fornecesse uma visão geral ou introdução à arquitetura da África Subsaariana. Inicialmente selecionamos destaques de vários países africanos para publicar apenas um volume, mas depois percebemos que precisávamos olhar para cada um dos países individualmente. O número de volumes começou a crescer e, no final, a publicação compreende sete volumes.

MJC: Qual foi o maior desafio na criação desta publicação?

AD: Coordenar o trabalho de mais de 300 autores e mais de 650 colaboradores, e harmonizar suas contribuições foi definitivamente um desafio. Os autores tinham várias formações – arquitetos, acadêmicos de diferentes disciplinas, estudantes, fotógrafos, ativistas. Outro desafio foi encontrar esses especialistas e criar essa rede de colaboradores. Isso levou muitos anos. Estamos agora construindo sobre isso, com a ajuda de uma doação da Graham Foundation, uma plataforma online, a Africa Architecture Network, que permitirá o contínuo crescimento dessa rede.

LM: Outro desafio foi a variação nas condições institucionais, políticas e socioeconômicas na África Subsaariana. Por exemplo, alguns condados têm forças institucionais limitadas e, consequentemente, não há arquivos para consultar. Em outros países, os autores enfrentaram vários desafios e dificuldades a serem superados para dar suas contribuições. Em alguns casos, inclusive, os fotógrafos foram presos ou detidos, o que tornou a documentação visual muito mais desafiadora também.

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Escola Flutuante Makoko em Lagos, Nigéria, NLÉ / Kunlé Adeyemi, 2013. Imagem © NLÉ

MJC: Vocês apontam que quando iniciaram esta publicação encontraram uma carência significativa de informações sobre a arquitetura africana. A que atribuem essa ausência?

LM: Faltou documentação de duas perspectivas. Na África, a publicação arquitetônica, com poucas exceções, está no seu início ou quase inexiste. Isso é parcialmente atribuível à grave escassez de capacidade arquitetônica em comparação com o Ocidente e o Oriente. Também faltam esforços robustos para tornar a arquitetura uma área de interesse público. Do ponto de vista fora da África, a cobertura crítica do continente é marginal, na melhor das hipóteses, por muitas razões. Vemos isso em todas as disciplinas – a arquitetura não é exceção. A falsa premissa é que não há demanda por conhecimento da arquitetura africana.

MJC: Existe uma arquitetura africana?

AD: Minha resposta seria não, não sem contextualizá-la. A arquitetura asiática ou a arquitetura europeia existem? Depende de como definimos “África” para começar e como definimos “arquitetura”. Dedicamos a maior parte do primeiro volume a essa questão, abordando sua definição por meio de 49 ensaios que oferecem teorias da arquitetura africana. Eles mostram que qualquer definição de arquitetura africana depende não apenas de questões de estilo, mas do tempo e dos modos de produção arquitetônica. Se você considerar isso, existem muitos pontos em comum entre os países africanos, o que nos permite falar de uma “Arquitetura Africana”.

LM: A África nunca foi um todo coletivo e homogêneo. O continente sempre esteve conectado e engajado com o mundo exterior. Essas trocas influenciaram tudo, da linguagem à arte e arquitetura. Se existisse uma arquitetura africana, certamente não teria uma linguagem singular. Há muitas Áfricas, cada uma arquitetonicamente multilíngue.

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Escola Swawou para meninas em Kenema, Serra Leoa, Orkidstudio, 2016. Imagem © Peter Dibdin, cortesia de Orkidstudio.

MJC: Vocês chegaram a organização desta publicação, apresentando o trabalho por país, logo no início do processo?

AD: Sim, muito rapidamente. Para encontrar os autores, procuramos organizações arquitetônicas em cada um dos estados-nação africanos. Historicamente, as fronteiras dessas nações foram traçadas de forma bastante aleatória e violenta pelas potências coloniais, mas a arquitetura dentro desses estados-nação tem suas próprias distinções e identidades. Para agrupar os países dentro dos volumes individuais, seguimos as divisões regionais da África das Nações Unidas.

MJC: Então, o conteúdo sobre a arquitetura dos 49 países individuais é o resultado do trabalho com arquitetos, acadêmicos e escritores locais?

LM: Desde o início, foi feito um esforço conjunto para se afastar da abordagem comum de apresentar uma janela para esses países a partir de um olhar ou quadro de referência ocidental. Era importante dar autonomia aos autores para escrever através de seu próprio olhar, para fornecer contexto local, nuances e perspectivas muitas vezes ausentes na mídia arquitetônica. A compreensão da arquitetura varia de acordo com a forma como se treinou ou se interage com a arquitetura. Muitos escritos sobre arquitetura no Ocidente são produzidos por pessoas treinadas no Ocidente, por isso, eles apresentam uma certa abordagem de como percebem a arquitetura – sua função, estética, relevância. Descobrimos que as pessoas veem e vivenciam a arquitetura de forma ampla, então, essa ênfase na interação local produziria uma pesquisa mais intrigante e perspicaz, capaz de ajudar o público a entender as práticas atuais dos arquitetos africanos, bem como o papel da arquitetura na descolonização, neocolonialismo, globalização e suas manifestações em todo o continente em escalas locais e regionais.

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MJC: Há um perfil esclarecedor em relação à quantidade de cada tipo de projeto apresentado nos volumes. “Urbanismo” é a menor categoria, com o menor número de projetos documentados. Isso é irônico no continente onde a urbanização está crescendo muito rápido, não?

AD: Como optamos pelo formato de guia de arquitetura, a publicação apresenta prioritariamente edifícios e projetos. A tendência é que o desenho urbano não se encaixe facilmente em uma definição tão prescrita, então, há menos projetos de desenho urbano como tipologia. Mas a crescente urbanização é um dos maiores desafios que o continente africano enfrenta. Os ensaios que consideram o contexto mais amplo da arquitetura africana examinam a urbanização em diferentes locais, bem como cerca de 70 perfis de cidades que se aprofundam no urbanismo.

LM: A Europa urbanizou-se ao longo dos séculos. A África – com exceção dos assentamentos urbanos pré-coloniais – está se urbanizando ao longo de décadas. Isso faz do urbanismo, como tipologia, um elemento mais recente na paisagem construída. Os edifícios individuais apresentados neste projeto, no entanto, abrangem mais de um milênio. Todas as eras históricas são analisadas através de sua documentação.

MJC: O que esta publicação revela sobre a preservação do patrimônio arquitetônico existente no continente e a arquitetura vernacular?

LM: Quando você pensa na herança africana – cultura, música, comida, artes – raramente a arquitetura se torna uma área crítica. No entanto, é na arquitetura que muito dessa herança se reúne e se manifesta. A posição da arquitetura como um importante componente do patrimônio tangível é amplamente subestimada, e essa publicação esclarece isso. A preservação é um processo muito lento no Ocidente e é ainda mais complicado na África: a falta de recursos, marcos regulatórios, capacidades institucionais. Este projeto revelou quão amplas são essas lacunas e nos impressionou a necessidade de documentação. É em grande parte por causa dessa deficiência que a África possui apenas 9% dos sítios do Patrimônio Mundial da UNESCO. Acreditamos que a publicação pode contribuir para essa deficiência documental.

MJC: Há uma mistura maravilhosa de artigos nos volumes, como aqueles que se concentram em publicações de arquitetura em diferentes países. Contem-nos sobre a importância de tais publicações para a arquitetura da África Subsaariana.

AD: Queríamos apresentar a arquitetura em seu sentido mais amplo, o que inclui as pessoas por trás dela. Também queríamos apelar aos estudantes e praticantes mais jovens para ver o que os outros estão fazendo. Isso pode estimular o crescente discurso e crítica arquitetônica nesses países.

LM: Também queríamos que as pessoas estivessem cientes de outros recursos de informação que estão elevando o discurso arquitetônico em todo o continente. A inclusão de algumas das publicações de arquitetura ajuda a aumentar seu perfil e traz as conversas sobre arquitetura para além do local, atingindo um público maior.

MJC: Há algumas entrevistas maravilhosas de jovens arquitetos e de arquitetos mais experientes. Eles conferem à publicação um sabor “agradável”. Qual a importância disso?

LM: A maioria das antologias reúne pares profissionais e apresentam uma voz unificada ou insights paralelos entre si. Aqui, dadas as complexidades presentes na arquitetura da África, queríamos apresentar uma comunidade diversificada de vozes, perspectivas, reflexões – através de gerações e disciplinas. Essa abordagem levou a uma variedade de artigos e ensaios que eram complementares e contraditórios.

MJC: Com a finalização desta ambiciosa publicação, o que mais surpreendeu vocês, o que lhes foi revelado sobre a arquitetura na África?

LM: Quão pouco as pessoas do continente, incluindo os arquitetos, sabem sobre os edifícios com os quais interagem, muito menos sobre a arquitetura dos estados vizinhos. Este projeto criou pontes entre essas divisões, para as pessoas aprenderem mais umas sobre as outras através da arquitetura. Como arquitetos, temos uma maneira muito distinta de olhar para o ambiente construído através de uma lente que é influenciada por nossa educação, que se concentra em princípios e precedentes ocidentais. Este projeto revelou não apenas o que construímos, mas por que construímos e como construímos. E como a arquitetura africana pode ser influente fora do continente.

AD: Muitos dos currículos das escolas de arquitetura africanas ainda se baseiam nos modelos ocidentais e na história colonial. Há muito nesta publicação que pode contribuir para mudar isso. Para ajudar a fazer alguma mudança, estamos doando cópias do guia para escolas de arquitetura de todo o continente em parceria com a Architecture Is Free Foundation e a editora DOM.

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Sobre este autor
Cita: Crosbie, Michael J.. "Um novo guia abrangente sobre a arquitetura da África Subsaariana" [A Remarkably Comprehensive New Guide to the Architecture of Sub-Saharan Africa] 29 Abr 2022. ArchDaily Brasil. (Trad. Sbeghen Ghisleni, Camila) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/979567/um-novo-guia-abrangente-sobre-a-arquitetura-da-africa-subsaariana> ISSN 0719-8906

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